quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Os dias curtos, o sol baixo, as sombras grandes, as bochechas vermelhas e o vento gelado.
Dezembro sussurra a hora dos balanços que se fazem por uma questão de hábito. Há sempre oportunidade para refletir, para colocar na ordem o caos da travessia das horas, dos dias, dos meses e dos anos.
Escorrego para dentro de dezembro e deixo-me cair a caminho do inverno que chega. Dezembro à beira mar. É como fugir para a profundeza de um sofá confortável, quando escondemos os pés por baixo das pernas.
A luz do inverno desliza entre a onda e o sal e toca com cuidado o mar. O corpo agitado respira pela última vez antes do abismo do tempo.  Os olhos agarram tudo o que podem e fecham-se sobre o coração que guarda um tesouro secreto cuja chave desapareceu, perdida no meio das lembranças geladas.



quarta-feira, 29 de novembro de 2017




Sabes o que acontece quando magoamos as pessoas? - disse Ammu. - Quando magoamos as pessoas, elas passam a gostar menos de nós. É isso que as palavras descuidadas fazem. Fazem as pessoas gostarem um pouco menos de nós.

Arundhati Roy, "O Deus das Pequenas Coisas

Os dias passam, um a seguir ao outro. Iguais. Sem cor ou forma. O que sobra no final da noite, quando as luzes se apagam e o silêncio pesa? Ficam as memórias de um amor que teima em não desaparecer. Fica uma porta deixada entreaberta onde a esperança ainda espreita. Fica a raiva, a tristeza e a ferida. Até quando? Não sei. 


terça-feira, 28 de novembro de 2017


A rapariga entra no expresso à minha frente. Tem uma transparência rasgante por baixo da pele cheia de cremes e afins. Não esboça um sorriso. Perfeitamente direita. Mesmo sentada, está perfeitamente direita. Uma linha direita que vai até ao topo da cabeça.  
Tem a boca cheia e ligeiramente brilhante. Talvez dezasseis anos de olhar fixo. Tem o cabelo fino e tão perfeito que dá vontade de tocar. Quero dizer-lhe olá e explicar-lhe que nos conhecemos. Daqui. Ou dali. 

segunda-feira, 27 de novembro de 2017


A luz do mundo espreita por entre ajanela e ilumina um corpo cansado, frustrado e desiludido. Um corpo que deu tudo até esgotar as forças. Um corpo que guarda as marcas e o cheiro de quem não o quer mais. 

domingo, 26 de novembro de 2017



E por vezes as noites duram meses 
E por vezes os meses oceanos 
E por vezes os braços que apertamos 
nunca mais são os mesmos E por vezes 

encontramos de nós em poucos meses 
o que a noite nos fez em muitos anos 
E por vezes fingimos que lembramos 
E por vezes lembramos que por vezes 

ao tomarmos o gosto aos oceanos 
só o sarro das noites não dos meses 
lá no fundo dos copos encontramos 

E por vezes sorrimos ou choramos 
E por vezes por vezes ah por vezes 
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

~

Tenho vontades dentro do meu corpo que aquecem os meus pulmões e a minha pele. A vontade de voar e ao mesmo tempo sentir os meus pés na terra. A vontade de pertencer. Descobrir o meu lugar independentemente do medo de me sentir do lado de fora. 
Não imagino o que vou fazer desta sensibilidade que sussurra junto ao coração, destas emoções e impressões fugazes por baixo da pele. 
Já experimentei tanta coisa e parece que nunca é suficiente. Como se faltasse um sentido. 
Como se faltasse um pedaço de mim.


sábado, 25 de novembro de 2017


 
As lágrimas  escorrem muitas vezes com os filmes de ontem, as séries leves e as comédias fáceis. Chora com algumas notícias que vê no telejornal. E a emoção a cada vida que nasce, a cada encontro novo. Cora com facilidade e tem a garganta sempre seca. O olhar prefere a emoção visível, como a pele e o amor.
Dá o melhor dos sorrisos aos fantasmas das ruas, como se uma simples intenção pudesse mudar o mundo.
Há sempre lugar para a alegria, o arrepio, a poesia, o humor e a suavidade. Há tantas faíscas por descobrir quando as palavras faltam.
Não aceita o desistir e as queixas estéreis. Prefere arriscar a queda para a dúvida e para a fragilidade.
Tem os pilares frágeis, a força tranquila e a inconsciência também. Prova o efémero e os fragmentos de vida que deixam a pele quente e satisfeita. Nem que seja  apenas por um instante.
 
 
Não tenho paciência para ouvir os outros, não tenho paciência para viver,
não tenho paciência para morrer, estou aqui, parada, num desequilíbrio interminável, nunca mais acabo de cair, irrito-me se me falam, sofro se me não dizem nada, odeio o gesto caridoso: a mão de alguém nos meus cabelos, o que eu quero é uma voz que me queira, um momento de descanso nessa voz.


Rui Nunes

sexta-feira, 24 de novembro de 2017




todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada

josé luís peixoto


Devíamos sempre ir ver o mar.

Olhei para este novo lugar só meu. Uma página virada, e mais outra, virgem, onde tudo pode ser escrito. A luz do dia que aparece no fundo do túnel depois de tantas noites sem dormir. Noites carregadas de dúvidas e perguntas.

Devíamos sempre ir ver o mar, ou as estrelas.

Fechei a porta do quarto e nunca me senti tão forte apesar das ruínas aos meus pés. Há a força que me obriga a seguir em frente, indiferente às feridas nos joelhos. Não há planos, apenas vontade de viver. Ninguém morre de um coração ferido. 


Devíamos sempre ir ver o mar. E as estrelas.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

 
Mark Olic

foram breves e medonhas as noites de amor
e regressar do âmago delas esfiapava-lhe o corpo
habitado ainda por flutuantes mãos

estava nu
sem água e sem luz que lhe mostrasse como era
ou como poderia construir a perfeição

os dias foram-se sumindo cor de chumbo
na procura incessante doutra amizade
que lhe prolongasse a vida

e uma vez acordou
caminhou lentamente por cima da idade
tão longe quanto pôde
onde era possível inventar outra infância
que não lhe ferisse o coração
Al Berto
 
 
 
A cada passo que dou espero encontrar um corpo onde me possa encostar, uns braços que me empurrem para a frente e uma voz que me diga: não olhes para trás.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Mercado do Bolhão, Porto, Henri Cartier-Bresson
 
 
 
É isso que fazemos às pessoas de quem gostamos, recortamo-las do resto do mundo.
 
Afonso Cruz
 
 
 O que é o infinito senão uma tentativa de limitar em oito letras o que não tem limites, o que não tem explicação.
Somos uma mistura de energia e matéria, uma amálgama de células cheias de intenções, imaginação e emoções. Tudo vibra, ecoa e responde. Basta fechar os olhos e ouvir o barulho do silêncio. Viver e morrer. É vertiginoso e magnético. E no final resta uma pergunta: o que fizeste da tua vida?
 

terça-feira, 21 de novembro de 2017





Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!

Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos.

Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector

Ausência

Ninguém sabe onde estás. Ninguém sente a tua falta. Não tem mal. É melhor assim. As palavras nascem quando o coração seca. O importante é avançar.
Seguir em frente. Caminhar no meio da multidão que empurra.
A noite cai e tentas  assumir as contrariedades. E todos os pensamentos que se misturam na tua cabeça. E mais uma vez foges da queda.